Dom Lindomar Rocha Mota
Bispo de São Luís de Montes Belos (GO)
O amor pode tudo
Logo de manhã, no primeiro dia da semana, Maria Madalena correu até o túmulo e foi verificar a situação de Jesus. Aquele mesmo que pouco antes tinha sido crucificado (Jo 20,1).
A morte, como na maioria dos casos, deveria ser a palavra final. Depois da morte sobra apenas a possibilidade de chorar, sentir saudades e se acalentar no ombro dos que ainda vivem.
A morte é a última palavra por excelência. Um termo definitivo da existência e dos afetos. Diante dela a fé sente um titubear que vai progredindo até produzir um estado de êxtase e de acomodação.
A fé confronta-se com as experiências, ainda sem exceção, que da morte ninguém volta. Os discípulos foram para casa. Estavam apavorados. Este pavor nascia da perplexidade de uma promessa não cumprida, de uma palavra falida ante o inimigo comum da humanidade.
Na fé os discípulos viveram no seguimento de seu Senhor. Também na fé deixaram suas casas e seguiram aquele que nem tinha onde repousar a cabeça. A fé, portanto, era a marca daquela comunidade.
A cena do dia anterior, entretanto, culminava no contraste mais forte que media a dimensão da fé. Por isso, no amanhecer daquele dia os discípulos estavam dormindo.
Dormir é um modo de acalentar o fulgor da esperança. A esperança insiste em continuar acreditando contra as observações comuns. Quando se trata de alguém que amamos a esperança chega a beirar o abismo, desafia o que é natural, como morrer, e aprofunda raízes em terrenos pouco consistentes.
Dormir representa, em certas circunstâncias, uma luta para não esperar mais nada.
Logo de manhã, Maria Madalena correu até o sepulcro. Ninguém sabia. Ninguém viu nem foi notificado desta proeza.
O sair de Maria Madalena foi sutil, e deslizou por entre a descrença que se instaurara entre os discípulos.
Do ponto de vista da sanidade esta sutileza é perfeitamente normal. É como um louco que aprende a se controlar para negar as suas visões, muito embora elas lhe apareçam de contínuo, e apareçam perfeitamente reais.
O amor, entretanto, não quer saber de nada disso. Não toma conhecimento de nenhum limite! Mergulha na compreensão de uma realidade que ninguém mais vê.
Logo cedo Maria Madalena chegou ao sepulcro, mas ele estava vazio. Doravante as coisas se complicaram. Muitas questões surgiram porque o sepulcro estava vazio.
No passado algumas questões tinham sido colocadas.
certa vez os discípulos começaram a discutir quem era o maior no reino dos céus. Se Jesus não interviesse esta dificuldade teria consumido a Igreja nascente e destruído o sonho de um mundo novo.
A palavra do Senhor foi conclusiva: o maior no reino dos céus é o menor entre vós. Desde aquele a dia este discurso tornou se dominante, mesmo quando desentoa da prática.
Em outra ocasião, eles discutiam se era lícito ou não ao homem abandonar a sua esposa. Esta confusão teria produzido uma injustiça infinita contra as mulheres, gerando a descredibilidade total da Igreja à medida que a consciência e o espírito de liberdade crescessem nas pessoas. Mas o mestre ainda estava presente, legislou contra qualquer tentativa de se prolongar esta injustiça. Simão Pedro exclamou no final: então a que vale casar-se?
Os assuntos decididos formaram o projeto salvífico da Igreja, mas outras questões se abririam quando da morte de Jesus.
Se ainda na presença de Jesus era difícil acreditar em algumas revelações, imagina-se a dificuldade que nasce das interpretações posteriores. Outra vez, um jovem foi encontrar Jesus e os discípulos e manifestou sua vontade de também se fazer discípulo. Tudo indica que era um jovem bom, tinha fé e era sincero. Após um pequeno diálogo Jesus decidiu que ele deveria vender os seus bens, distribuir entre os pobres e segui-lo. O jovem esmoreceu-se e foi embora.
A questão seguinte complicou-se quando Jesus observou que era difícil para um rico entrar no reino do céu. Os discípulos perguntaram, então: quem poderá se salvar? Mais uma vez Jesus resolveu facilmente a dificuldade dizendo: para os homens é impossível, mas para Deus não.
Tudo isso acontecia e encontrava respostas em uma palavra que não podia ser contestada, porque estava na origem, era a gênese de uma nova proposta, era normativa e ao mesmo tempo tinha diante de si aquela universalidade concreta que somente em Jesus é possível.
Jesus era a norma vivente. Mas naquele dia de manhã não estava mais lá. Quando Maria Madalena chegou, como mulher cujo amor havia suspeitado da morte o túmulo estava vazio.
O amor foi a última coisa que sobrou. A fé desaparecera, mas o amor continuava operante, e chegou antes dos discípulos.
É interessante que tenha sido uma mulher a chegar. Como toda mulher, Madalena tinha superado a descrença, sem buscar nada para si. Somente o amor lhe era suficiente. Por isso chegou primeiro.
Amando como fez, não buscou nenhuma explicação. Não tentou justificar nada, nem compreender com passagens desgastantes o que o amor lhe tinha revelado.
Voltou correndo e foi contar a Pedro e João o que tinha visto: retiraram o senhor do sepulcro e não sabemos onde o colocaram.
É verdade o que Madalena falou. O sepulcro estava vazio e a esperança renasce em seu coração. Não é um simples roubo, pois não sabiam onde ele estava.
Os discípulos correm, e o seu correr é para o lugar antes ocupado pelo corpo. Não é o roubo que interessa, mas a constatação de que o corpo não estava lá.
É um momento crucial na história do cristianismo. Um cristianismo cuja norma vivente não estava mais lá.
Maria Madalena não teve outra escolha. Tudo o que poderia fazer era resultado de suas observações, de sua experiência apostólica, de como Jesus havia depositado em Simão Pedro uma confiança especial em respeito àquilo que viria, por isso, correu até Pedro e lhe disse: o sepulcro está vazio o que devemos pensar? Jesus ressuscitou como disse ou seu corpo foi roubado?
Os dois corriam juntos
Foi dada a partida. Os discípulos dispararam pelos caminhos de Jerusalém. As ruas eram tortuosas e os empecilhos eram muitos, pois o povo já estava desperto. As feiras começavam a funcionar. Mesmo correndo demoraria algum tempo até chegar ao sepulcro, localizado fora da cidade.
A fé voltara a encontrar uma luminosidade. Os discípulos corriam sem se chocarem. Desviavam dos múltiplos empecilhos mas não se chocavam.
Às vezes João removia algumas barreiras para permitir a passagem de Pedro. Outras vezes, Pedro, que estava um pouco atrás, alertava João para os perigos proveniente da imprevisibilidade de uma feira.
Os dois corriam juntos. As vezes se entreolhavam cheios de admiração um pelo outro. Às vezes se afastavam momentaneamente para seguirem os caminhos escolhidos, e novamente voltavam a se encontrar.
Pedro correu. Correu tanto quanto pode. E pensava que se Jesus continuasse no sepulcro, e seu desaparecimento fosse uma ilusão de Madalena, então não era mais necessário voltar para Jerusalém. Ninguém nunca mais veria Simão Pedro. Pensando deste modo Pedro continuava. O fôlego começava a acabar e a fé ia se dissipando à medida que se aproximava do destino.
Pedro começou a se sentir como alguém que acorda no meio da noite. O sepulcro vazio concordava com tudo que Jesus falara. Mas, com o passar do tempo, e à medida que o sol nascia esta idéia não parecia tanto convincente. O clarear do dia destrói as boas idéias da noite.
Pedro começou a esmorecer. Aquele amanhecer era o amanhecer de um dia solitário. O primeiro de muitos que se seguiriam.
De uma parte o sacrifício de Jesus, de outra o seu próprio sacrifício. A vida transcorrida à luz de uma ideia. Esta ideia levou Judas ao desespero por não a ver realizada. Agora estava fazendo a mesmo com Pedro.
O amanhecer daquele dia foi o mais terrível!
Agora uma nova chama se acendia. Maria Madalena trouxera uma notícia interessante: o sepulcro estava vazio. Mas quem era Maria Madalena? Seu amor por Jesus não teria causado uma dissonância cognitiva? Esta alucinação não poderia pesar demasiadamente sobre a vida dos demais discípulos, caso não se comprovasse? Por isso Pedro e João saíram quietinhos para verificar.
Mas agora já era suficiente. Pedro não poderia continuar se arriscando deste modo, era preciso desviar o caminho e seguir em outra direção. Enquanto pensava suas pernas começaram a tremer. A ausência de respostas atormentava-lhe o coração.
Alguma coisa entrou em crise enquanto Pedro corria. Não entendia como alguém pudesse não morrer.
Tudo até agora tinha apontado para este caminho. A morte é o preço comum da humanidade. Isso não tem nada a ver com a fé, dizia Pedro. O mestre foi grande. Isso é suficiente pelos anos que passei como seu discípulo.
Pedro se lembrou do discurso da montanha. Como lhe agradara relembrar aquelas palavras. Era a consumação de um sonho de tudo o que era mais humano. Uma humanidade feliz. O que mais agradou a Pedro foi a sentença de Jesus que dizia: bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça porque deles é o reino dos céus. Era só uma questão de tempo. A morte do justo não passaria em vão.
Pedro decidiu dedicar o resto de suas forças para provar que Jesus estava certo. Não era criminoso, nem havia profanado a doutrina dos judeus.
É isso, pensou ele. É totalmente possível demonstrar que as sagradas escrituras não falam outra coisa, além de Jesus. O erro não foi nosso, foi deles.
Nestas palavras, as bem-aventuranças se realizariam. Sua fome e sede de justiça lhe valeriam o reino dos céus.
Mas a morte não! Dela ninguém escapa. Por um breve instante Pedro pensou: é bom que não escape. As pessoas devem morrer, e começou a repetir: é bom morrer é bom morrer…
A morte do mestre abriu um precipício em seu coração, e foi bom que isso acontecesse. No coração humano não tem lugar para precipícios. Tudo nele é contínuo. Na esperança ele espera o que ainda não existe. Na fé ele enxerga onde nenhum olho ainda penetrou. Nele tudo é contínuo. É o seguimento do destino. Seu destino é pensar tudo como unidade.
No coração nada é incompleto. A vida só é vivida na completude de sentidos. As lacunas são preenchidas por verdades pouco evidentes, mas que moram exatamente no coração humano. Na crise uma lacuna sempre é preenchida.
Pedro então decidiu, é tempo de parar.
Antes, porém, levantou o olhar um pouco para frente e avistou João correndo de modo bastante regular. Suas forças pareciam perfeitamente conservadas. Os desvios que Pedro havia feito foram ignorados por João. Seu caminho tinha sido direto. Era esta a sua vantagem.
A diferença não era o vigor, era o correr direto em uma direção, ultrapassando e saltando todos os infortúnios do caminho.
Pedro olhou no rosto de João e esperava uma acusação pelo modo como estava pensando, e porque daí a pouco iria parar.
Mas não! Naquele rosto não tinha nem juiz nem acusado, nem sinal de resignação, nem vaidade. Tinha apenas um coração suave.
O rosto de João era de um homem que tinha se esquecido de si mesmo, esquecido da vida dura durante os anos do discipulado e dos sofrimentos de Jesus que ele presenciou em primeira pessoa.
Era surpreendente!
Em seu rosto não se expressava nenhuma pergunta, e ninguém poderia impedi-lo de percorrer aquele caminho.
Pedro continuou olhando e se espantou. Teve vontade de pegá-lo pelo braço e conduzi-lo para casa. Mas o fascínio daquele rosto ia tomando outra forma, a ponto de confundir a Pedro.
O fascínio do amor resplandecia mais. Seu fascínio maior é dar esta continuidade ao coração. E era ela que resplandecia no rosto de João. Era um espetáculo sublime, cheio de virtudes.
Naquela representação não existia uma divisão entre o amor e a instituição. Essa é a sublimidade dos espetáculos: nenhum dos dois era consciente das diferenças que lhes impeliam a correrem juntos. Um estava sobre o olhar do outro, mas não se viam; viam somente uma grande luz resplandecente que saia do sepulcro.
O olhar de Pedro no rosto de João esclareceu um percurso, até então tumultuado. Bastou o olhar. Sem uma palavra. Sem nenhuma explicação. João corria e se denunciava quanto à falta de sanidade. Um jovem que não acreditava na morte, cujo rosto tornou-se irresistível para Pedro.
De repente Pedro não sentia mais vontade de pará-lo. Seu coração também se encheu de esperança e olhou mais uma vez na direção de João. Não ouviu nenhuma voz, mas uma coisa divina parecia quebrar a resistência das distâncias. Não se sabia quem ia retirando os empecilhos do seu caminho, entretanto, isso estava acontecendo. O amor que sempre abre a porta para todos quando precisa encontrará alguém que lhe abrirá a porta.
Então Pedro continuou correndo. Queria chegar lá também. Enquanto continuava correndo pensava no anúncio de Maria Madalena: o sepulcro está vazio. A sua consciência foi lhe dizendo que tudo aquilo deveria ter uma explicação.
O pensamento de Pedro começou a examinar o seu discipulado e ele se recordou que um dia tinha subido à montanha com Jesus, e lá ouviu uma palavra significativa, na qual uma voz ecoava de sobre as nuvens dizendo: este é meu filho bem-amado.
Aquele pensamento fez Pedro procurar no todo dos três anos do seu seguimento uma explicação, afinal, ele foi o primeiro a ser chamado. Estava presente desde o início e conhecia todos os pormenores daquele anúncio.
Em seguida lembrou-se de outro fato. Ele mesmo tinha confessado, uma vez, quando Jesus começou a interrogá-los quem ele era. Lembrou de sua intervenção como uma profissão de fé. Alegrou-se imensamente por ter dito que, embora todas digam, que tu és um profeta, outros, que és João Batista, eu, porém, digo que tu és o Cristo o Filho de Deus.
A ternura começou a preencher o corpo cansado, pois fazia muito tempo que estava correndo. Foi doce a recordação de como o rosto de Jesus se virou em sua direção e lhe disse: tu és Pedro e sobre esta pedra eu edificarei a minha Igreja.
Não! Aquela corrida não poderia ser em vão. Tinha um significado. Ultrapassava as experiências. João era a prova viva. Correndo daquele jeito não poderia haver dissimulação.
Pedro, então, decidiu assumir a responsabilidade. Sim! Foi sobre ele que Jesus prometeu edificar a sua Igreja. A notícia de Madalena era desnorteante: “retiraram o senhor do sepulcro e não sabemos onde o colocaram”, mas não era o fim. Pedro tomou consciência que deveria recorrer à tradição e interpretar, autenticamente os acontecimentos recentes.
Sua primeira disposição, ainda ofegante, pois continuava correndo, transportou-lhe para as diversas palavras do mestre. E ele, Pedro, juntamente com os discípulos mais próximos, eram os únicos a se recordarem de detalhes que não foram narrados à grande multidão. Pois, em segredo o senhor lhes explicava detalhadamente muitas outras coisas. Naquele ofegar as coisas começavam a se esclarecerem e Pedro acreditou que o corpo de Jesus não havia sido roubado. Ele ressuscitou como dissera várias vezes antes.
Quando se percebeu de novo estava correndo mais. Ia disparado explicar a João o acontecido, ajudá-lo a compreender tudo que estava se passando.
O discípulo que Jesus amava correu mais
João, desde o início, saiu na frente. Corria mais rápido que Pedro, e o seu olhar estava fixo na direção do sepulcro. Às vezes olhava atrás por um breve instante, mas somente para se certificar que Pedro ainda estivesse lá.
O dia anterior tinha sido estranho. As provações chegaram ao seu estado mais alarmante. Tudo o que existia de belo e de bom parecia estar se corrompendo na experiência da morte. João encheu os olhos de lágrimas. Entretanto, estas não eram lágrimas de desespero, eram lágrimas de comoção.
Um sentimento profundo estava lhe alertando que o momento definitivo havia chegado. O sonho da humanidade recolhido no fato de que Jesus não estava mais no sepulcro fez disparar o coração de João.
Agora João se sentiu como um indivíduo estranho. Perdeu o equilíbrio sobre a terra. Sentiu a necessidade de saltar. Naquele momento saltar era para ele uma necessidade. Estar de contínuo no ar era a única chance de superar o desequilíbrio produzido pela força da inércia dos desvairados desejos e das perturbações da terra.
A estranheza é a marca profunda do amor, e, por vezes, o abandono por aquilo que parece ser a última palavra, sua característica principal.
Já era demais! João não suportava mais o tempo que ainda faltava para verificar as palavras de Madalena. A transfiguração ocorrida naquela noite o impulsionou para uma decisão definitiva que o transportou para fora deste mundo, sem conquistar nenhuma certeza.
João começou a correr mais rápido. Correu tanto o quanto pode, e aqueles que o viram correndo pensaram que ele não retornaria mais, e ele não retornou.
Enquanto corria João ouvia seu coração pulsar. Momentos raros quando se é todo coração. Envolto por uma áurea nova, desaparecendo numa outra realidade.
João pensava que não era dali nem de lá – não era de lugar nenhum – estava só, e assim deveria continuar.
De repente descobriu-se saltador. Era criança e estava destinado a permanecer infinitamente neste estado.
Enquanto acelerava o passo João pode sentir-se – pela primeira vez se sentia – nenhuma dor cutucava, nenhum ressentimento, nenhum desespero.
O seu correr era mudo; não tinha o desejo de ensinar nada para ninguém, totalmente mudo. Nem mesmo João poderia aprender alguma coisa de sua corrida. Acelerou mais ainda, e sentiu que estava deixando a terra. A respiração compassada fez desaparecer a resistência. A velocidade alcançada era incrível. Foi um ponto de vista visto de muito alto, e então se verificou o milagre: João voou.
Uma junção perfeita entre a matéria e o espírito que se esqueceu do passado sem projetar nada para o futuro. Seus últimos pensamentos, antes de retornar à terra, foram da mais pura esperança que existe: é preciso chegar antes, pois o Senhor pode se cansar de esperar.
O amor vai provocando estas formas de beleza estranha. Originando outro tipo de fé. Daquele tipo que não dúvida de nada. A principal expressão do amor é a difusão. Ele corre por toda parte e se mete em tudo. Sua estrutura é característica, é como coisas que não se contém em lugar nenhum.
O amor não repousa. Não tem nenhum lugar natural. É sempre novo, e cada vez que volta produz um efeito diferente.
Este aspecto confunde as pessoas, sempre tão acostumadas a repetição do igual e da segurança. No amor não! Nada é seguro! Sua insegurança é na verdade sua única segurança. Sua força consiste em não resistir. Por isso ele sempre corre mais.
Agora era João quem pensava. Estava parafraseando o mestre e, sem saber o imitava. Começava a dizer palavras belas e acreditar para além de toda esperança. A característica principal do amor não é apenas dizer coisas bonitas, mas fazer com que todos aqueles que são tocados também as digam.
Os pensamentos de João eram como suas palavras, fluíam de dentro das experiências passadas e se lembrou comovido de uma vez que Filipe duvidou. Recompôs a história de outra aflição, num dia que Jesus subiu ao monte para rezar e uma grande multidão o seguiu. A noite caia e o povo não tinha nada para comer e voltar para a cidade era perigoso, pois já fazia muito tempo que não comiam.
O temor de Filipe se concretizou na afirmação que nem todo o dinheiro dali seria suficiente para alimentar aquele povo. André resolveu arriscar, e no meio da multidão encontrou um garoto com cinco pães e dois peixes, mas em seguida concluiu: o que é isso para tanta gente?
Pensando assim, João quase parou. O amor, entretanto, não pode parar. Mesmo no seu estado de repouso é ainda o mais veloz dos movimentos. Poderia correr e pensar, e assim o fez. Jesus Não considerou nenhuma ordem natural. Multiplicou os pães e os peixes e distribuiu entre a multidão. Todos comeram e ainda sobraram vários cestos.
Meu Deus, Pensava ele agora. Que aflição? Tudo tinha passado. O amor não tem medida; é difusivo e vai aonde quer, faz o que quer e é perfeitamente justificável.
O amor pertence a mais antiga das tradições. É o sentimento mais antigo e mais terrível. É como Deus, terrível em não julgar, em se colocar de joelhos e mesmo assim ser indestrutível.
Deus é amor, pensava João mais uma vez. No passado Deus também já foi chamado de terrível. Esta qualidade vale para Deus e para o amor.
Existe uma outra coisa terrível: a lei. Até então ela sustentava tudo. O próprio mundo repousa sobre leis imutáveis que brotam do coração de Deus. Sua chama mantém de pé a sociedade. João mesmo a havia experimentado. Já tinha testemunhado um confronto decisivo. Uma atitude inusitada que colocou frente a frente a lei e o amor.
Tudo aconteceu num dia quando Jesus, descendo do Monte das Oliveiras, resolveu ir até o templo, os fariseus e os escribas trouxeram uma mulher apanhada em adultério e lhe apresentaram dizendo: Moisés, na lei, nos mandou apedrejar tais mulheres. E tu, que dizes?
Sem dizer uma única palavra, pois é próprio do amor nunca se alterar, Jesus começou a escrever no chão. Aquele ato irritava profundamente os homens ávidos de decisão e de julgamento. Por isso insistiram em indicar a coisa certa a fazer. A lei nos ordena o apedrejamento.
O amor não se dobra nem é julgado por ninguém. É ele quem julga. Dá a dinâmica e imprime o movimento sem dizer uma única palavra.
O amor ama os homens. Ele conserva uma crença eterna na humanidade sem se tornar ingênuo.
Alguma coisa nele se nega a julgar quem quer que seja. E em nenhuma circunstância exprime um juízo de condenação. É por isso que o amor parece admitir tudo, se compadece com tudo.
O amor, pensava João, nunca se espanta nem se assusta. O amor vive de modo a não poder ser surpreendido.
Quando não consegue mais suportar o horror, o amor simplesmente se afasta, um afastar inocente. Sem desprezo ou julgamento a quem quer que seja.
Naquele dia ele não olhou para ninguém. Permaneceu imóvel e na sua imobilidade agitava os corações. O amor escrevia enquanto estava imóvel.
O amor chegou primeiro ao sepulcro mas não entrou
O amor é paciente, o amor é prestativo; não é invejoso, não se ostenta, não se incha de orgulho. Nada diz de inconveniente não procura seu próprio interesse, não se irrita, não guarda rancor (Cor 13,4).
São Paulo descreveria mais tarde essas características do amor. Cada palavra se enquadra na disposição de João. Não se chega primeiro para ser o primeiro, mas para permitir que outro lhe passe a frente e receba dos mesmos dons; participe primeiro.
Então, entrou também o amor, que chegara primeiro ao sepulcro: e viu e creu
O carisma é a força do amor que empurra para frente a Igreja. Anuncia que Cristo está presente, e a iminência de volta já esta caracterizada pela sua presença no meio de nós. O Carisma corre como Maria Madalena e o apóstolo João.
Entretanto, o amor deve ser compartilhado e oferecido primeiro, para ser amor. Os muitos movimentos e comunidades se encontram hoje, no estado tal, que as vezes se chocam com a instituição. Reclama para si o direito de entrar primeiro, e, assim fazendo, esquece que o amor é paciente.
João é o carisma, mas não teve dúvida em deixar Pedro entrar antes. Afinal, foi ele, a quem Jesus chamou primeiro; foi dele que Jesus disse: sobre esta pedra edificarei a minha Igreja. Portanto, deveria ser Pedro a dizer se o Senhor, de fato, havia ressuscitado ou simplesmente desaparecido.
Seu parecer foi reconhecido válido. As coisas saíram do campo da especulação e se tornaram verdades de fé.
O que é de Deus permanece, como já nos lembrou Gamaliel, o que não é desaparece ou desaparecerá. É preciso apostar no amor. As vezes parece difícil, como difícil foi a vida dos apóstolos naquele primeiro momento. Os anúncios subversivos do amor não se enquadram na explicação comum e foge da lógica quotidiana.
Quanto a nós, contudo, devemos continuar apostando no amor. Os movimentos, as novas comunidades, os carismas diversos, estão agora sendo testado pelo Espírito Santo. É preciso ouvir a voz do magistério ordinário na pessoa dos bispos e, sobretudo, do sumo pontífice, o Papa, que, como Pedro, detém o poder de dividir as opiniões das verdades de fé. Sem, contudo, esquecermos que estamos correndo para o mesmo lugar, o encontro pessoal com o amor, com o Cristo vivo e ressuscitado.