Havia um homem rico

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Dom Lindomar Rocha Mota
Bispo de São Luís de Montes Belos (GO)

Havia um homem rico! A abertura de Lucas 16,19 é simples e lapidar. Não há nome, apenas uma condição que ocupa a cena. O grego fala de púrpura e linho finíssimo, porphyra e byssos, tecidos caros que tingem o corpo de distinção. O narrador acrescenta que ele se banqueteava “todos os dias” com esplendor, sugerindo uma vida inteira voltada para si, sem intervalo para a compaixão.

À porta, jogado como quem foi descartado, está Lázaro, um pobre com nome, e o seu nome já vale como teologia, pois significa “Deus ajuda”.

A narrativa de Lucas coloca lado a lado anonimato revestido de luxo e pobreza nomeada, invertendo a lógica social que costuma conhecer o rico e esquecer o pobre. Lázaro está coberto de feridas, desejava saciar-se com as migalhas que caíam da mesa do rico e cães vinham lamber-lhe as feridas. Os cães, figuras impuras na cultura daqueles dias, tornam-se os únicos a tocar o corpo ferido.

O rico nunca atravessa o próprio portão para encontrar o outro. Nesse quadro dramático a morte chega para ambos.

Lázaro é levado pelos anjos ao seio de Abraão, imagem de consolo e banquete, lugar de proximidade ao patriarca. O rico morre e é sepultado, mas o detalhe que se segue é decisivo. No Hades, em tormentos, ele levanta os olhos e vê ao longe Abraão e Lázaro ao seu lado. O primeiro pedido que faz revela que nada mudou no seu modo de ver. Chama Abraão de pai e pede que Lázaro venha aliviar sua língua com umedecer de água. A cena desnuda o coração. Mesmo depois da morte, continua a ver Lázaro como subordinado, alguém que deveria servi-lo. Abraão responde com uma palavra que mistura ternura e verdade. Chama-o de filho e convida-o a lembrar que, em vida, recebeu bens, enquanto Lázaro recebeu males. Agora o consolo mudou de lugar e há um abismo que não permite passagem.

O abismo não é só um traço do além, mas figura do intervalo que o rico cavou em vida. A porta que nunca atravessou transformou-se em um precipício entre os mundos. Lázaro estava a poucos passos, mas esse pouco era vasto, porque o coração do rico não reconhecia proximidade. É uma geografia moral.

Os passos que não damos tornam-se distâncias que não se cruzam depois. A justiça da parábola não nasce de uma decisão tardia, mas brota da verdade de uma vida inteira inclinada sobre si.

O rico tenta um segundo pedido. Se Lázaro não pode vir, que ao menos vá avisar seus cinco irmãos, para que não venham parar no mesmo lugar. Abraão responde com sobriedade: eles têm Moisés e os Profetas! Que os ouçam!

A conversão não depende de espetáculos. Depende de ouvir a Escritura que já pede mãos abertas e coração vigilante. O rico insiste que se alguém dentre os mortos for até eles, hão de se arrepender. Abraão encerra o diálogo com lucidez que desarma a curiosidade do milagreiro. Se não escutam Moisés e os Profetas, nem mesmo se alguém ressuscitar os convencerá.

Esse texto é para uma comunidade que já conhece a ressurreição de Jesus. Por isso, o recado é claro.

A exegese do relato ganha espessura quando o recolocamos no arco do Evangelho. Pouco antes, Jesus advertira que ninguém pode servir a Deus e ao dinheiro. Lucas acrescenta que os fariseus, amigos do dinheiro, zombavam dele, e Jesus lhes disse que Deus conhece os corações. A parábola cai exatamente nessa discussão. Não é uma condenação genérica da riqueza, e sim uma denúncia de um modo de vida que ignora a proximidade do pobre e transforma bens em muralhas. Em Lc 14, os convidados de um banquete buscam os primeiros lugares e recusam a presença dos pequenos. Em Lc 15, o Pai faz festa pela volta do filho perdido. Em Lc 16, um administrador astuto aprende a usar o dinheiro para o futuro. O homem rico da nossa história ignora tudo isso. Festeja a si mesmo, não usa os bens para fazer amigos junto a Deus, não vê o irmão à porta. A parábola narra a omissão que se repete até virar crueldade.

Também a escolha dos termos carrega precisão. O rico é plousios, palavra que no contexto ressoa advertência. Lázaro é ptōchos, o pobre que não tem de onde tirar sustento. Ele “foi colocado” à porta, sugerindo que outro o pôs ali, como quem deposita o que não quer guardar. A mesa do rico tem migalhas que caem. Lucas deixa ver que bastaria pouco para mudar o destino daquele homem. A resposta de Abraão retoma a lógica dos “ai de vós, ricos” e das bem-aventuranças “felizes vós, os pobres” do capítulo 6. A inversão não é capricho nem vingança. É a justiça do Reino que coloca cada um no lugar que corresponde ao amor que praticou.

Lázaro chega ao banquete que não se encerra. A ironia é fina: quem mais comia descobre a fome, quem mais sofria, pelo critério da misericórdia, chega à saciedade.

Quando a narrativa se apoia em “Moisés e os Profetas”, convoca passagens que o ouvinte reconhecia de memória. A Lei que ordena abrir a mão ao pobre. Os profetas que denunciam o luxo e banquetes indiferentes enquanto o povo geme, quase que convocando Isaías que chama de jejum verdadeiro partir o pão com quem tem fome.

O rico, daquele tempo, e de hoje em dia, não precisa de revelações extraordinárias, basta cumprir o que já fora dito e a regra universal da fraternidade. Por isso, o pedido de um sinal vindo dos mortos soa como fuga. O problema não estava na falta de luz, mas na recusa do olhar.

O rico chama Abraão de pai e é reconhecido como filho. A descendência não é negada, contudo, a herança é distribuída para quem chama de irmão aquele que está caído à porta. O parentesco com o patriarca não dispensa a prática da justiça. O homem que vestia púrpura e linho ignorou o fio que entrelaça a mesa de Deus com a mesa da humanidade.